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Ciência da Psicologia
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O circo de horrores das redes sociais

Reflexões sobre o caso da ageira que não quis trocar de assento com criança no avião

Demerval Bruzzi (CRP 01/21380)

12/12/2024 20h43

Apelidada de “diva do avião, Jeniffer Castro se negou a troca de lugar com criança durante voo e a cena viralizou na web.

As redes sociais, inicialmente concebidas como espaços de conexão e troca de ideias, têm se tornado, cada vez mais, um palco para julgamentos instantâneos, linchamentos virtuais e exposições desproporcionais. Um caso recente ilustra bem esse fenômeno: a mulher que se recusou a ceder seu lugar na janela do avião para uma criança, uma situação aparentemente banal que rapidamente se transformou em um espetáculo virtual de ódio e julgamento.

Para quem não está ciente do fato, explico: durante um voo, uma mulher, que havia reservado seu lugar próximo à janela, recusou-se a cedê- lo para uma criança que queria sentar-se ali para ficar próximo à avó. A cena foi filmada e compartilhada nas redes sociais, gerando ondas de discussões acaloradas. A mulher, que durante o voo foi rapidamente criticada como egoísta e insensível, ou a ser aclamada nas redes sociais como a “diva a paciência”, por ter se mantido plena e em silêncio em seu lugar e com fones de ouvido, e ainda teve seu direito de permanecer no assento – que havia escolhido e pago – defendido por muitos.

O incidente, que poderia ter se limitado a uma discussão trivial entre ageiros, tornou-se viral e transformou os envolvidos em alvos de julgamentos moralistas e ataques pessoais. Do dia para a noite, a ageira que não quis trocar de lugar com a criança ganhou milhares de seguidores em seu perfil no Instagram, concedeu entrevista exclusiva para um grande canal de TV e até foi contratada para fazer propaganda. E, para piorar a situação, a pessoa que filmou a cena não tinha qualquer envolvimento com o caso, revelando o quanto as pessoas negligenciam suas próprias vidas para se tornar parte de um “tribunal” nas redes sociais.

Esse episódio reflete a transformação das redes sociais em um tribunal virtual instantâneo, onde questões complexas ou privadas são reduzidas a narrativas simplistas para consumo e julgamento coletivo. No ambiente digital, os contextos são frequentemente ignorados, e as pessoas são rotuladas com base em poucos segundos de vídeo ou em relatos parciais.

A psicóloga Sherry Turkle, em seu livro Alone Together (2011), aborda como o ambiente digital favorece interações desumanizantes. Quando rotulamos alguém apenas como “a mulher que não cedeu o lugar” ou “a criança mimada”, perdemos a capacidade de enxergar a complexidade de suas razões, história e emoções.

A viralização de situações como essa expõe uma contradição curiosa: enquanto muitos clamam por mais empatia, outros promovem linchamentos virtuais que desumanizam e amplificam a dor dos envolvidos. Essa “empatia seletiva” tende a se voltar para a parte mais vulnerável num primeiro momento — neste caso, a criança —, sem considerar os direitos ou perspectivas da outra parte, que após exposta nas redes sociais ganhou a proteção e iração daqueles que, também julgando, direcionaram sua ira para a mãe da criança, que, por sua vez, nada teve a ver com o caso, a não ser pelo fato de não controlar o choro de seu filho.

A cultura da vergonha nas redes sociais, descrita por Jon Ronson em So You’ve Been Publicly Shamed (2015), demonstra como os julgamentos online podem destruir reputações e causar danos irreversíveis. Os envolvidos no caso, desde a mulher que teve sua imagem e ações amplamente discutidas, até a mãe da criança que nada filmou, estão enfrentando consequências emocionais e sociais duradouras, e tudo isso por causa de uma terceira pessoa que se autoapropriou do papel de “paladina” da sociedade.

Grande parte desse comportamento é motivada pelo desejo incessante de viralização e engajamento. Postagens polêmicas geram curtidas, comentários e compartilhamentos, mas também perpetuam um ciclo de exposição desnecessária e invasão de privacidade.

A contaminação ideológica tem desvirtuado de forma perversa ações que há pouco tempo eram consideradas como consciente e assertivas, como, por exemplo, a educação de uma criança para ar negativas e desilusões, ou seja, não se desenvolve mais a resiliência, sob alegação do “TUDO PODE”.

O caso da mulher que não cedeu seu lugar no avião é mais um exemplo do circo de horrores que as redes sociais podem se tornar quando usadas sem responsabilidade. É um alerta sobre a necessidade de resgatarmos o respeito e a reflexão em nossas interações digitais. Se continuarmos a alimentar essa cultura de julgamento instantâneo, corremos o risco de destruir não apenas a dignidade de indivíduos, mas também a própria essência de conexão e entendimento que as redes sociais deveriam promover.

E, por fim, nunca é tarde para lembrar que já vivemos um momento na história recente da humanidade, em que diferenças não eram toleradas e as atrocidades eram permitidas, desde que fossem a favor de um determinado grupo, que se utilizando das “redes sociais” de sua época (cinema e rádio) propagava a “raça pura”. Pois é… o ado nos ensina e também nos alerta para os riscos do presente.

Até a próxima!

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