Menu
Quinto Ato
Quinto Ato

O Sopro Divino Criativo

Nenhuma tarefa é, ao mesmo tempo, mais dolorosa, prazerosa e gratificante do que o ato de criar

Theófilo Silva

28/07/2022 6h00

Atualizada 27/07/2022 16h46

Para o criativo Alexandre Dumas, “Depois de Deus, Shakespeare foi quem mais criou”. Soa blasfemo – é que Shakespeare criou mais de mil e trezentas personagens – mas Victor Hugo, James Joyce, Freud, Cervantes, Machado de Assis, Goethe e muitos e muitos outros criadores concordaram com o autor de Os Três Mosqueteiros, tanto que vasculharam em profundidade na obra do bardo procurando entender como seu gênio foi possível. Nenhuma tarefa é, ao mesmo tempo, mais dolorosa, prazerosa e gratificante do que o ato de criar – as mulheres vivem essa benção duplamente. Só mesmo aqueles que se sentam diante de uma tela em branco de computador (ou uma folha de papel); de um cavalete de pintura, com um pincel na mão; com um violão, ou com dedos nas teclas de um piano; de um bloco de mármore, ou de outros artefatos, e se propõem a criar uma obra de arte, sabem do que estou falando. Arrepios percorrem nosso corpo e, às vezes, as mãos tremem diante da árdua tarefa. A imaginação corre solta e os primeiros os são dados. Iniciado o processo, as coisas vão se concatenando e o susto inicial a, gerando uma sensação de alívio.

Cada um tem uma forma de se concentrar antes de iniciar a tarefa. Alguns fazem longas caminhadas, outros se recolhem a um profundo isolamento, há os que ouvem música, brincam com um animal, ou contemplam o objeto à sua frente, como que a desafiá-lo, esperando o primeiro toque acontecer. Alguns já trazem o produto pronto, já concebido em suas mentes. Isso ocorre, principalmente, na poesia e na música, em que tudo pode jorrar de uma vez, aos borbotões. É a chamada inspiração, de que tanto falavam os românticos.

Há um grupo que trabalha com grande dificuldade, de forma exaustiva e meticulosa, recompondo cada frase, escolhendo cada palavra, para obter a sonoridade e o efeito desejado. No caso dos músicos, os que usam partituras, veem cada nota e cada instrumento de forma particularizada, montando a melodia em sua cabeça. No caso de um escultor, isso já não é possível. Ele não pode consertar o mármore que já foi talhado. Michelangelo antes de esculpir o Davi ava dias inteiros contemplando o bloco de mármore, tentando enxergar o Davi que estava dentro dele.

Mas nada disso é garantia de se produzir algo de bom. Fazer, criar, produzir uma obra de qualidade “São outros quinhentos”, para usar um ditado popular. Nada garante que dali sairá algo que agradará a todos, conseguindo aprovação em seu tempo, ou quem sabe no futuro. Há gênios que não tiveram o prazer de serem reconhecidos em vida, e sofreram mortalmente com isso. Os casos de Van Gogh na pintura, e de Franz Kafka e Emily Dickinson na literatura são exemplos gritantes.

Como Mozart pode ter composto um minueto aos quatro anos, uma ópera aos sete, e uma sinfonia aos doze anos? Uma criança. Compondo mais de seiscentas peças musicais, das quais dezenas são consideradas obras-primas. Tendo vivido apenas trinta e cinco anos?!Pouquíssimos privilegiados, ou melhor, iluminados, conseguem criar obras de grande qualidade durante sua vida inteira. Alguns têm lampejos que podem durar apenas alguns anos, uma ou duas décadas. Isso pode ser constatado aqui mesmo no Brasil, com os compositores da chamada MPB, nos anos sessenta e setenta. Para muitos, essa turma só fez canções de qualidade até o início dos anos oitenta, e estagnaram sob a democracia. Caso de Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Milton Nascimento, João Bosco e outros. Portanto, estariam há mais quarenta anos sem produzir algo que chegue perto das criações do ado.

Orson Welles fez o maior filme de todos os tempos, Cidadão Kane, aos vinte quatro anos e depois mais umas cinco obras-primas, tendo produzido filmes de qualidade por uns quinze anos. Depois disso, perdeu-se e nunca mais fez algo realmente irável. O caso do adolescente Rimbaud – a literatura não tem virtuoses, como a música e a matemática – que escreveu poesia brilhante, de primeira qualidade até os dezenove anos é outro caso. Depois disso ele nada mais fez.

Quando se contempla o que fizeram os Beatles, que em sete anos produziram mais de duzentas canções, das quais mais de cinquenta são obras-primas, que o mundo todo conhece, reconhecemos a existência do gênio. Mesmo que Paul McCartney seja um gigante, John Lennon superava Paul, como criador, em tudo, e Lennon criou a vida toda, sua obra pós Beatles é excelente, se não superior quando era um Beatle. É duro constatar que faz quarenta e dois anos que Lennon foi assassinado, e devemos nos perguntar sobre o que ele teria feito se ainda estivesse vivo.

Infelizmente, criar obras encantadoras que marcam nossas vidas, maravilham nossos corações e mentes e enriquecem a humanidade não é privilégio somente de pessoas de caráter. Seria maravilhoso que fosse assim. Figuras sádicas e repulsivas como Percy Shelley, Pablo Picasso, Woody Allen, Louis Ferdinand Céline, Ezra Pound e vários outros, produziram coisas fantásticas. São gênios da humanidade! Mas, infelizmente são monstros! Temos de reconhecer isso.

O certo é que a criação, o ato de criar, o sopro de Deus, nos torna seres especiais. É Hamlet quem diz: “Que valeria o homem, se o bem principal e o interesse de sua vida consistissem em comer e dormir? Não aria de um animal”. Pois “A função de arte é oferecer um espelho à natureza”.

Deixamos de ser meros animais, quando criamos coisas belas!

    Você também pode gostar

    Assine nossa newsletter e
    mantenha-se bem informado