Por Marcos Linhares, Adriana Kortland e Marcelo Capucci
Especial para o Jornal de Brasília
Giaco ou pelo pilar. Curioso isto, naquela manhã. Desde a morte de Chiara, ele se recusava a ar por aquele caminho. A memória do carro destruído, o corpo ensanguentado, o recado no celular, o luto. Como um poço, tudo aquilo foi encapsulado no avesso de sua mente. Evitar aquele lugar era condição indispensável para que a repressão do vivido fosse completa. Desse a volta que desse, por toda a cidade, mas por lá, não! Agora, lá estava ele, ando pelo pilar central, sentindo imediatamente seu corpo soar o alarme: taquicardia, boca seca, respiração curta, suores frios.
Uma raiva o fez iniciar um monólogo:
– O que você está fazendo aqui? Quer explodir de vez, seu louco?
Trêmulo, dirigiu até o acostamento, ligou o pisca-alerta, desligou o motor e fechou os olhos. Começou a fazer exercícios de respiração, acalmando-se. Um furacão de cenas o invadiu, fazendo brotar lágrimas no homem construído para ser o amparo dos outros. Inesperadamente, ele se permitiu destrancar represas. Pensou:
– Cara, você está à beira de um “burnt out”! Não sai daquele hospital, não dorme, não come. Está querendo ir ao encontro de Chiara?
Um rosto apareceu diante dele: Nonata! Surpreso, freou seus pensamentos. Era em Chiara que deveria pensar… Limpou o suor do rosto, pegou o celular, procurando as mensagens dela.
– Caramba… ela enviou um monte de mensagens, e você nem respondeu!
Deu partida no carro, e rumou para o aeroporto. No trajeto, ligou para Téo:
– Já está no hospital?
– Acabei de chegar, Giaco. Algo novo no plantão?
– Além do caos nosso de cada dia? Não. Tem outra coisa que quero te dizer!
– Pode falar.
– Téo, estou indo para o aeroporto. Vou ver a Nonata, custe o que custar.
– UAU!
– Vai ser um bate e volta. Sabe, estou precisando…
– Giaco, não se justifique! De jeito nenhum!!! Nunca vi um médico tão dedicado, até demais, se me permite ser franco. Parece que o Dr. Giaco substituiu o homem. Entende? O que digo pro pessoal? Você sabe, se não voltar a tempo, vão pensar que está com covid!
– Não se preocupe.
– Preocupado? Estou feliz por você. Eu reparei como você espichava o olho para ela no congresso. Pode ir que eu seguro a barra.
Giaco desembarcou do avião, revigorado pelo cochilo durante o voo. Andando a os rápidos e trocando a máscara, ele entrou no táxi, dando o endereço do hospital de Nonata.
– Tem muito trânsito até lá?
– Uma meia hora.
– Posso lhe dar algumas máscaras de presente? Sabe como é… sou médico, não perco a mania!
– Ô, doutor. Obrigada! A grana tá curta. Ainda não consegui botar a barreira de acrílico.
– Deixo-as aqui, no banco de trás.
Giaco pensou em Nonata:
– Agora é tudo ou nada, Giaco. Ou ela me descarta de vez… ou gosta de vez!!!
Digitou uma mensagem:
– Bom dia, Nonata. Enviei algo para o seu trabalho. Será entregue em meia hora. Poderia ir para a porta principal?
– Giaco! Que surpresa boa. Estou em casa hoje. Mas, sem problemas, moro na esquina. Vou para lá.
– Isso é que é gostar de ser médica!!!
– Quando se mora em cidade grande, qualquer minuto conta!!!
Giaco tirou a máscara, e desceu do táxi sem prestar atenção nos barulhos urbanos, sirenes e buzinas. O esmurrar de seu coração o fazia sentir que tomara a decisão certa. Olhava a hora quando ouviu:
– Giaco?
Ele se virou, viu Nonata e seu sorriso acolhedor.
– Oi. Eu vim…
Uma enfermeira apressada para seu turno viu sua chefe e falou:
– Doutora, mas nem na folga a senhora se afasta daqui???
Ela acenou de volta, fazendo cara de sem graça. Encarou Giaco:
– Vamos para um lugar mais calmo?
Nonata abriu a porta de sua casa.
Os dois entraram em um pequeno apartamento, abarrotado de livros de medicina, até sobre a mesa e o sofá. Peças e tapetes étnicos davam charme ao lugar.
– Depois que enviuvei, trabalhei em vários lugares, assistência em terremotos, inundações. Gostei da vida itinerante, tenho pouco.
Mantendo distância, Giaco mirou seus olhos:
– Nonata, este é o pior momento para um encontro. É claro que eu faço testes com frequência, sempre negativos, tomo todos os cuidados…
– Eu também…
– No meio dessa loucura, algumas coisas ficaram claras. Parece óbvio… mas esse caos suga até o óbvio!
– Que é…
– O que começou naquele dia, no congresso. Não quero quebrar aquela magia, se é que já não…
Com delicadeza de pluma, ela se aproximou e deslizou suas mãos pelos braços de Giaco.
Silêncio. Respirações. Olhares.
– Giaco. Está tudo certo. Não fosse sermos médicos, e sabermos de cor as recomendações de sexo seguro na pandemia, eu já teria voado em seu pescoço. Imagino que você também!
Ambos riram.
– E banho? Banho pode, Nonata. O sal de ácido graxo mata…
– Ah… médicos e jargões…
Riram novamente.
Ligando apenas as arandelas junto ao armário de espelho, ela começou a encher a banheira. Acionou a playlist, que começava com The man I love, de Billie Holliday e foi buscar um drink.
Giaco observava Nonata e pensava:
– Já perdi uma mulher incrível. Não vou perder esta chance de felicidade agora!
Voltou da cozinha com duas taças e um bom vinho.
Enquanto ela se despia, não sem certo pudor, Giaco acariciou suas costas:
– Não quero mais me separar de você por muito tempo.
– Nem eu.
CONTINUA NA PRÓXIMA TERÇA-FEIRA